É preciso recuar no tempo para ir ao rizoma desse movimento. Aliás, desses movimentos. O Recife vivia a sua pior fase na virada dos anos 80-90, dentro de um país que descia ribanceira abaixo nos tresloucados anos Collor. A secularmente próspera capital pernambucana desandava e o estado perdia posição relativa na economia nordestina. Mas os fundamentos estavam lá, intactos e desafiados. Falamos aqui de conhecimento, tecnologia, criatividade: os ingredientes da nova economia. Havia uma vibração diferente em alguns segmentos da academia, especialmente o Centro de Informática da UFPE, e do mundo das artes, com destaque para o cinema, as artes plásticas e a música.
Era o tempo da globalização, das mudanças políticas de orientação liberal e da revolução tecnológica que se (re)inaugurava com a internet. Seja lá o que isso significasse para os protagonistas naquele momento (clareza a gente só tem depois), a ideia era abrir janelas para o mundo que se redesenhava nesse redemoinho e criar novas alternativas para economias periféricas como o Recife. Do outro lado do mundo, na Austrália, começavam a ser usinadas novas leituras acadêmicas para explorar as possibilidades conceituais e práticas da economia criativa – aquela encruzilhada entre ciência, tecnologia, artes e negócios, no contexto da nova sociedade hiperconectada em que o lado não prático das coisas, a dimensão simbólica escondida por trás dos objetos, a subjetividade da forma (estética) e a criação original em escala passavam a ter valor de mercado e significado econômico.
Do lado de cá, numa sincronicidade quase premonitória, eram criados dois movimentos paralelos: o Movimento Mangue e o Delta do Capibaribe. Com o primeiro, com sua icônica imagem de uma parabólica enfiada na lama, a inquietação ganhou forma e os coletivos criativos – a brodagem, numa palavra bem nossa – produziam freneticamente filmes, experimentações visuais, músicas e festivais. Com o segundo, espécie de prolongamento natural de uma longa história de pioneirismo em tecnologia tanto na universidade como no mercado, foram multiplicados empreendimentos de base tecnológica (ainda não havia startups no repertório dos negócios inovadores).
Foi nesse caldo de cultura, sem trocadilho, que as barreiras seculares que excluíam mutuamente cientistas e artistas foram rompidas. Para o bem de todos, os universos das artes e da tecnologia se encontravam e compartilhavam a mesma mesa de bar. Se a parabólica conectava a raiz ao éter, a frase-seminal de Fred Zero Quatro – “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro” – conectava as artes e as tecnologias digitais ao mercado.
Um registro que não pode passar em branco: as dinâmicas eram tão entrelaçadas que quase não havia distinção, na própria imprensa inclusive, entre as palavras beat (unidade rítmica) e bit (unidade computacional). Uma das primeiras incubadoras de negócios de tecnologia de chamava BEAT – Base de Empreendimentos Avançados de Tecnologia. E o site que precariamente reverberava isso tudo, em especial a música, se chamava MANGUE BIT. Daí para a criação do CESAR, e deste para o Porto Digital, e do PD para a comunidade empreendedora Manguezal, que agrega centenas de startups, e do conjunto de tudo para fazer do Recife a maior concentração per capita de estudantes em cursos de computação e informática do país foi um pulo. Mas não foi fácil.
E não será nunca, pois a construção de ecossistemas de inovação depende, entre tantas outras coisas, dos nontradable goods – aquela porção de componentes intrínsecos a cada lugar, a fração de características peculiares do pensar e fazer de cada realidade que não se compra e nem se vende em prateleiras. Mas a experiência do Porto Digital pode ser apropriada naquilo que é comum aos ambientes que constroem futuros: capital humano como base, inovação como regra, diversidade como princípio e conexões como meio para negócios. E muito trabalho.