Cientistas sociais não se cansam de dizer que um dos males do Brasil é que as mudanças são feitas a partir de arranjos entre as elites. O raciocínio vale para as grandes mudanças, como a proclamação da república, e também para as pequenas, como a decisão de liberar público nos estádios de futebol em plena pandemia. O povo está no discurso, mas o fato é que ele é usado por essas elites para viabilizar seus objetivos. Sem avançar no mérito do que seja povo e elite, revoluções mesmo, com o povo e para o povo, nunca houve. Um país que faz a abolição tardiamente e, ao implementá-la, indeniza senhores de escravos, ao invés dos escravizados, já anuncia a que veio, colhendo desigualdade e injustiça lá na frente. Somos assim por escolha própria.
Três episódios recentes dessa grande novela chamada Precipício Brasil ilustram o papel secundário do povo na equação política oficial. O primeiro é a conta de luz. Depois de ler umas vinte matérias sobre o assunto, me dei conta de que o problema não é o aumento do preço da energia ou mesmo a falta dela e seus impactos na sociedade. É o equilíbrio do sistema. Criamos essa categoria social agora. Mais trabalho para os sociólogos, cientistas políticos e economistas. O racional de uma boa política pública deveria ser o que fazer para assegurar energia a preços razoáveis para as famílias e para o sistema produtivo, numa perspectiva de longo prazo. Mas não, o que predomina é uma completa inversão do sentido lógico das coisas, com a prioridade estratégica nacional sendo deslocada para o plano da racionalidade econômica do sistema provedor dos serviços. O sistema capturou a política, mais uma vez.
Claro que há um cálculo por detrás. Nesse cálculo, sobra oportunismo eleitoral e mais uma vez falta povo. O que é um paradoxo, pois é esse mesmo povo que decidirá, espera-se, o futuro de quem pariu Mateus. Se der errado – como já deu – a esperteza se volta para comer o dono. Adiou-se o quanto foi possível a comunicação para a sociedade da iminente crise hídrica e suas consequências sobre o consumo e preços. Retardou-se o racionamento, recomendado pelos bons especialistas, e mesmo medidas usuais, como o horário de verão, foram descartadas para não incomodar o povo. O mais honesto seria o governo assumir que a razão era simplesmente não introduzir mais um vetor negativo na sua já combalida imagem junto à população. Melhor então jogar pra frente pra ver no que dá. Deu no que deu: ameaça real de desabastecimento, aumento de tarifas para preservar o equilíbrio do sistema e popularidade em queda. O benefício vai para o sistema, mas a conta sobrou para o povo. De novo.
O segundo episódio diz respeito ao ENEM. Esse mecanismo de aceso ao ensino superior impacta milhões de jovens de todas as classes sociais todos os anos. Chegou perto de 9 milhões de inscritos em 2014, embora hoje, por razões diversas, mobilize apenas pouco mais de um terço. Democraticamente, devemos chamar esse coletivo diminuído de povo. Povo que cada vez mais conta menos nos últimos tempos em que a gestão do exame tem se transformado numa tragédia social. O que deveria fluir sem sobressaltos para garantir equilíbrio emocional aos jovens às vésperas do momento mais importante das suas vidas, é conduzido de forma atrabiliária pelos edurocratas de Brasília. É necessário mesmo judicializar as coisas para garantir direitos básicos. É o caso de decisão recente do STF restaurando a gratuidade negada pelo ME.
A forma mesquinha como o Ministério da Educação impediu esse benefício para aqueles estudantes que, em plena pandemia, faltaram ao exame em 2020, é de uma insensibilidade atroz. A explicação oficial foi “é para dar disciplina aos jovens”. Essa pedagogia anacrônica, quase uma palmatória moral aplicada no século 21, serve, na visão do ministro, pra eles aprenderem a não faltar mais. O argumento tosco é reforçado por um pior ainda: o ministério “jogou dinheiro na lata do lixo”. É quase, fazendo aqui um raciocínio invertido, como ouvir um comandante do corpo de bombeiros lamentar o desperdício de dinheiro com viaturas, equipamentos e pessoal pois não houve um incêndio sequer.
O terceiro episódio do Precipício Brasil é o mais escancarado: trata-se da gestão da pandemia pelo governo federal e seu caráter anti-povo, materializado na política epidemiológica centrada na imunidade de rebanho. Talvez devessem morrer 2,5 a 3 milhões de pessoas para provar que o capitão estava certo. Mas disso está cuidando a CPI da Covid. Com um adendo de última hora: a se confirmarem as denúncias a respeito do uso de pessoas como cobaias para experimentos não-científicos destinados a impulsionar o uso do kit Covid e outras terapias desautorizadas oficialmente e em escala global – articulação que envolveria a Prevent Sênior e o ministério-sombra da saúde – estaríamos diante de algo até aqui impensável mesmo para os padrões morais da política brasileira.
É aguardar os próximos capítulos para ver se o povo terá alguma chance.
Autor: Francisco Saboya – Presidente da Anprotec
Fonte: Canal MyNews