Há um problema com a as grandes cidades. Aliás, vários. No geral, o nome da confusão se chama deterioração da qualidade de vida, que é obviamente um conceito relativo, pois envolve tanto questões facilmente mensuráveis, como oferta de leitos hospitalares, quanto de muito difícil medição, como satisfação pessoal. Entender e explicar como funcionam as cidades é matéria para especialistas. Mas como a gente vive nelas e é parte da sua construção cotidiana, temos uma espécie de autoridade cidadã para opinar e contribuir para o debate. Cidades são incríveis construções humanas.
No passado, elas prosperavam principalmente porque eram dotadas de abundância de recursos naturais, porque ficavam em encruzilhadas de grandes fluxos de pessoas em caravanas ou porque detinham posição geográfica privilegiada para fins de defesa militar. Hoje, quando conhecimento e inovação são os principais ativos econômicos, elas crescem porque são capazes de formar, atrair e reter gente. Especialmente, capital humano qualificado. Adicionalmente, cidades bem estruturadas também são mais eficientes e atrativas para capitais financeiros de risco, tornando-se assim mais habilitadas para impulsionar negócios competitivos criadores de riqueza em escala crescente.
Mas há uma contradição estrutural nas dinâmicas urbanas. Cidades são grandes incubadoras sociais. Quanto mais elas crescem, mais aptas a proverem infraestruturas, serviços e oportunidades para os moradores elas se tornam. Mais ainda, elas facilitam conexões e relacionamentos entre pessoas, que geram alma, senso de comunidade e dão vida às cidades. Esse é o lado positivo dessas dinâmicas de crescimento exponencial. Mas isso tem um preço.
Distanciando-se cada vez mais do jeito meio Londres, mansamente urbanizada em longas filas (no dizer aqui adaptado de João Cabral) – filas dos ônibus, dos postos de saúde, dos carros em vias engarrafadas… – com o tempo elas se tornaram agressivamente desiguais, colapsadas em infraestruturas precárias, violência urbana, falta de oportunidades, moradias caras, para a classe média, e inexistentes, para as camadas de mais baixa renda progressivamente expelidas para periferias distantes dos núcleos civilizados das cidades. E, ainda assim, seguem sendo atrativas para mais pessoas que imigram e vão se somando às outras nos depósitos de gente com baixa qualidade humana. O que reforça o problema.
O físico e biólogo inglês Geoffrey West (Scale, disponível na Amazon) explora a questão da escala urbana por meio de analogias com os padrões comuns ao crescimento biológico, em busca de uma espécie de modelo geral capaz de explicar os movimentos das cidades ou mesmo dos negócios. A eficiência das cidades é reflexo dos ganhos de escala. E seu oposto também. De postos de gasolina a redes de esgoto, vias e habitações, tudo parece indicar que as infraestruturas e serviços tendem a andar em descompasso com o crescimento das cidades numa proporção mais ou menos constante, algo como, em elas dobrando de tamanho, resultasse num encolhimento dos ativos urbanos em cerca de 15% (assim como os batimentos cardíacos dos mamíferos caem 25% quando estes duplicam seu tamanho).
E as cidades estão dobrando, triplicando de tamanho. Numa projeção para os próximos 30 anos, serão urbanizadas algo como 1,5 milhão de habitantes por semana. Elas crescem numa escala superlinear, mas seus componentes urbanos crescem de forma sublinear. Algo parece sair fora de controle em desfavor da qualidade de vida de todos.
Esses insights nos fazem refletir que o equilíbrio da vida urbana passa a depender de pelo menos três fatores: i. do ritmo e intensidade das inovações destinadas a aumentar a eficiência no uso dos recursos urbanos; ii. da exploração equilibrada dos recursos naturais finitos, dita sustentabilidade; e iii. da estabilidade epidemiológica. Esse último ponto entra na equação agora basicamente por conta da covid, pois quanto mais tempo o vírus perdurar – o corona e os próximos – mais transformador ele será, implicando em mudanças estruturais nos processos de trabalho que envolvem categorias de trabalhadores em serviços tecnológicos e outros de mais alta qualificação e renda – precisamente aqueles que tracionam a competitividade das cidades.
Finda essa pandemia, o cenário de que pelo menos 20% das horas trabalhadas passem a se dar de forma remota delineia um panorama negativo para os grandes centros. Pois são esses trabalhadores de renda média mais elevada que efetivamente têm capacidade de implementar um novo estilo de vida. Seu deslocamento para satélites urbanos, digamos assim, resultará na redução do nível de dispêndio nas cidades de origem, com forte impacto nos serviços e comércio tradicionais. Como eles são grandes empregadores, e já enfrentam a concorrência do comércio eletrônico e da automação das atividades, tenderão a experimentar uma espiral descendente de consumo, ocupação e renda. Em outras palavras, declínio urbano, para as cidades emissoras, prosperidade, para as receptoras. O que nos remete aos fatores i e ii anteriores.
Mas existe um outro personagem nessa mesma equação, que são os muito jovens zillennials e os gen zers’, cujas expectativas quanto ao trabalho remoto são/serão distintas da média dos trabalhadores millennials pra trás. Eles buscam maiores interações, novas conexões humanas, outras perspectivas. A experiência recente da covid deu sinais muito claros: é difícil segurar toneladas de testosterona em longos programas de quarentena. As cidades são mais competitivas quanto mais sejam capazes de atrair os melhores talentos, isso já foi dito. Mas, se tiverem um olhar no futuro, serão melhores ainda aquelas que se prepararem para receber os mais jovens, oferecendo-lhes não apenas infraestruturas padrão Washington ou Brasília, mas cultura, sustentabilidade, conhecimento, tolerância com a diferença. Em resumo, novas e diferentes oportunidades de criação de coisas e negócios e a possibilidade de terem uma vida mais vibrante.