As cidades hoje têm que ser mais competitivas segundo os parâmetros da sociedade do conhecimento. Para tal, precisam ser atrativas para pessoas de fora e para capitais financeiros de risco conectados com a nova economia
Um dos efeitos colaterais da pandemia sobre os negócios da economia digital é a hipermobilidade do capital humano. Para empresas e lugares mais fragilizados, isso tem outro nome: fuga de cérebros. Mais do que um problema restrito apenas aos negócios com reduzida capacidade de retenção de seus melhores talentos, o fenômeno fragiliza as cidades. Principalmente aquelas em estágio intermediário de desenvolvimento, que se caracterizam, de um lado, por possuírem boa base de formação acadêmica e, de outro, reduzida demanda por capital humano criativo devido ao baixo dinamismo e tradicionalismo de seu tecido produtivo.
É como se essas cidades fossem involuntariamente convertidas em plataformas de lançamento de talentos para outros lugares, beneficiando-se pouco ou quase nada do potencial de geração de riqueza desse ativo na nova economia. Elas arcam com o ônus da formação, mas não usufruem de nenhum bônus da mesma. E pior: nessa segunda onda do brain drain, o cérebro vai e o corpo fica, restando às cidades assistirem impotentes a seu declínio tendo a solução literalmente à mão. Esse é um paradoxo duro de roer.
O problema não é recente, e seu enfrentamento há décadas passa pela criação de parques tecnológicos e mecanismos promotores de novos negócios inovadores, como aceleradoras, incubadoras, espaços de coworking, maker spaces, entre outros. Estes ecossistemas de inovação são espaços de formulação, articulação e implementação de políticas de desenvolvimento de longo prazo para promoção de novas dinâmicas produtivas intensivas em conhecimento e inovação. Transplantando o conceito para a prática, são plataformas de lançamento de negócios competitivos em escala global, ajudando as cidades a substituírem os paradigmas seculares de vantagens locacionais baseadas, por exemplo, em recursos naturais ou posição estratégica para fins de logística ou defesa militar.
As cidades hoje têm que ser mais competitivas segundo os parâmetros da sociedade do conhecimento. Para tal, precisam ser atrativas para pessoas de fora e para capitais financeiros de risco conectados com a nova economia. Mais eficientes para a população, com melhores serviços e infraestruturas urbanas e, como consequência, mais capazes de reter talentos criativos. Mais justas socialmente, mais inclusivas, mais participativas, mais democráticas. E, naturalmente, mais amigáveis para os negócios inovadores. Como a dispersão de fatores não ajuda nesse esforço, os ecossistemas de inovação tornaram-se o ponto focal dessa estratégia devido a sua capacidade singular de concentrar ativos críticos como infraestruturas e serviços tecnológicos de alto valor agregado, gerar múltiplas interações entre pessoas e empresas, estimular fluxos de conhecimento, fortalecer vínculos de cooperação e sinergia para desenvolvimento de negócios competitivos.
Se tomarmos como verdade que o capital humano é o único que cria soluções originais para problemas relevantes, o êxito de um ambiente de inovação repousa essencialmente na sua capacidade de gerar, atrair e reter os melhores talentos criativos, sendo todo o resto quase que consequência. Botando o coronavírus na jogada, a crise sanitária revelou que o isolamento não foi apenas uma imposição. Foi uma descoberta: podemos produzir mais e melhor de forma remota para uma quantidade apreciável de atividades. É fato que o território tangibiliza muito mais do que qualquer instância virtual. Mas a realidade tornou-se muito mais híbrida. Ao mesmo tempo, a criação segue sendo um esforço coletivo. Desta maneira, o sentido literal da fixação de capital humano ganhou outro significado: pessoas podem trabalhar de qualquer lugar, desde que trabalhem para o seu lugar, em prol da sua cidade: temos então que reter cérebros. Ambientes de inovação precisam assimilar essa nova realidade e serem reconfigurados para que se mantenham como alavancas do desenvolvimento local.
Qualquer esforço de reconfiguração deve partir de dois vetores. O primeiro, a necessidade de se intensificarem as interações humanas, sem as quais o processo de criação de valor por meio do compartilhamento do conhecimento entre talentos perde potência; o segundo, o reconhecimento da impossibilidade de se manter o mesmo padrão de trabalho em escritórios de antes, do que resulta um esvaziamento crescente dos espaços físicos.
Cruzando estes dois vetores, discussões realizadas na ANPROTEC – Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores – vêm sinalizando para duas alternativas não excludentes. Uma trata da conversão de espaços em co-livings, que são moradias compartilhadas com infraestruturas para trabalho e serviços comuns, a serem ocupadas por jovens empreendedores, startups e trabalhadores das empresas desses ambientes de inovação. A outra ideia consiste na fragmentação dos parques tecnológicos e sua rearticulação em diferentes pontos da cidade, criando o conceito de parque em rede, cujos nós teriam infraestruturas e serviços comuns e seriam compartilhados pelos atores que o integram de acordo com sua conveniência. As atuais sedes desses parques seriam o nó central, o back-bone dos parques em rede, abrigando a gestão e serviços de maior complexidade.
Assim, os modelos híbridos ganhariam outra conotação, com ganhos para as cidades, empresas e trabalhadores.